Os galos cantam anunciando o nascer de um novo dia. Do meio do Cruzeiro, no início da freguesia da Ajuda, ouve-se o ecoar dos sinos que, do alto da Igreja da Boa-Hora, tocam em compasso cadente as seis horas. Mais um dia começa cheio de sol parecendo Primavera, mas a temperatura baixa e a ausência das aves migratórias recorda às mentes mais distraídas que o Inverno ainda está para ficar.
Da janela da cozinha oiço, enquanto olho a paisagem que se estende à minha volta, ao longe, muito ao longe, os barcos no Tejo a assinalarem a sua presença e, um pouco mais ao alto, um leve som do comboio a passar pela ponte.
Na rua andam descontraídas as senhoras que, ainda de pijama e robe vestidos, de chinelos calçado e cabelo desgrenhado, vão à padaria comprar pão fresco para o pequeno almoço.
Por volta das oito, ganho coragem para enfrentar um novo dia e saio de casa para a universidade. Na rua vêem-se já algumas pessoas apressadas para o trabalho e outras ainda a levarem os mais novos à escola. Muitos deles, coitados, ainda meio ensonados quase que vão arrastados pelo caminho.
Por entre passeios de terra, herança de uma outra época de antigas quintas, das quais apenas resta o velho portão e algumas pequenas hortas ainda hoje tratadas por alguns vizinhos, e outros já ladrilhados, caminho para a paragem do autocarro. Pelo caminho passam por mim algumas pessoas num caminhar apressado e pesado e um grupo de crianças que vai para a escola num grande reboliço, atropelando-se mutuamente ao tentarem todas elas contar em simultâneo as suas aventuras. Toda esta energia contrasta com o meu caminhar sereno, despreocupado e preguiçoso, que é apenas uma forma que encontrei para não me deixar envadir logo pela manhã pelo stress da vida da cidade.
Quando chego à paragem já uma fila de pessoas se forma, são sempre as mesmas caras, mas nunca ninguém se fala, e da esquina um pouco mais à frente vem um forte aroma a café e pão quente que aquece por breves instantes a manhã fria. O autocarro passa, mas mesmo tendo pressa prefiro esperar pelo eléctrico, que tem um ritmo inverso ao da cidade a esta hora e que permite uma viagem menos atribulada e acidentada.
Do lado esquerdo para quem vem de Alcântara, encontram-se as intermináveis filas de carros que caracterizam o pára/arranca do trânsito em Lisboa e a zona do comércio de dia. Do lado oposto, a linha de comboio separa a cidade do rio, da actividade ribeirinha e da zona dos grandes armazéns, muitos deles transformados em locais de diversão nocturna, dando muita cor à noite de Lisboa e transformando-a numa outra cidade.
Vejo passar a zona residencial e as antigas zonas industrial e comercial de Alcântara e por entre inúmeras obras que se estendem pelo caminho, erguendo novos e modernos edifícios e construíndo novas e amplas avenidas, vislumbro os deslumbrantes edifícios antigos, como o imponente Museu das Janelas Verdes, e alguns prédios de dois a três andares que, apesar de desgastados pelo tempo, ainda conseguem encantar pela sua arquitectura e cores alegres.
Ao chegar ao fim da viagem, apesar de não passar pelo mercado mais conhecido de Lisboa, 'A Ribeira', sinto no ar a azáfama dos vendedores que durante anos a fio fazem do mercado a sua segunda casa e dele tentam tirar o seu sustento, sem nunca parecerem desanimar.
No final da tarde, com a cidade mais calma e no regresso a casa, entrevêem-se nas ruas os rostos cansados, que um sorriso amarelo mal consegue disfarçar, e o trocar de face da cidade que, como uma mulher, parece ganhar vida e força para se vestir de luz e cor, entrando na noite para arrasar.
Todo este mundo fica para trás quando chego a casa e oiço, nos seus latidos e mios noctívagos, os cães e os gatos do bairro e, à porta de casa, já sinto o cheiro do jantar pronto a ir para a mesa. Nesta altura, chega, pelo menos para mim, o fim de um dia de Lisboa.
Escrito num dia esquecido no final de 1999 ou inícios de 2000.
Seja como for, foi no século passado.