sexta-feira, 29 de abril de 2011

Lisboa, Um Quotidiano

Os galos cantam anunciando o nascer de um novo dia. Do meio do Cruzeiro, no início da freguesia da Ajuda, ouve-se o ecoar dos sinos que, do alto da Igreja da Boa-Hora, tocam em compasso cadente as seis horas. Mais um dia começa cheio de sol parecendo Primavera, mas a temperatura baixa e a ausência das aves migratórias recorda às mentes mais distraídas que o Inverno ainda está para ficar.

Da janela da cozinha oiço, enquanto olho a paisagem que se estende à minha volta, ao longe, muito ao longe, os barcos no Tejo a assinalarem a sua presença e, um pouco mais ao alto, um leve som do comboio a passar pela ponte.

Na rua andam descontraídas as senhoras que, ainda de pijama e robe vestidos, de chinelos calçado e cabelo desgrenhado, vão à padaria comprar pão fresco para o pequeno almoço.

Por volta das oito, ganho coragem para enfrentar um novo dia e saio de casa para a universidade. Na rua vêem-se já algumas pessoas apressadas para o trabalho e outras ainda a levarem os mais novos à escola. Muitos deles, coitados, ainda meio ensonados quase que vão arrastados pelo caminho.

Por entre passeios de terra, herança de uma outra época de antigas quintas, das quais apenas resta o velho portão e algumas pequenas hortas ainda hoje tratadas por alguns vizinhos, e outros já ladrilhados, caminho para a paragem do autocarro. Pelo caminho passam por mim algumas pessoas num caminhar apressado e pesado e um grupo de crianças que vai para a escola num grande reboliço, atropelando-se mutuamente ao tentarem todas elas contar em simultâneo as suas aventuras. Toda esta energia contrasta com o meu caminhar sereno, despreocupado e preguiçoso, que é apenas uma forma que encontrei para não me deixar envadir logo pela manhã pelo stress da vida da cidade.

Quando chego à paragem já uma fila de pessoas se forma, são sempre as mesmas caras, mas nunca ninguém se fala, e da esquina um pouco mais à frente vem um forte aroma a café e pão quente que aquece por breves instantes a manhã fria. O autocarro passa, mas mesmo tendo pressa prefiro esperar pelo eléctrico, que tem um ritmo inverso ao da cidade a esta hora e que permite uma viagem menos atribulada e acidentada.

Do lado esquerdo para quem vem de Alcântara, encontram-se as intermináveis filas de carros que caracterizam o pára/arranca do trânsito em Lisboa e a zona do comércio de dia. Do lado oposto, a linha de comboio separa a cidade do rio, da actividade ribeirinha e da zona dos grandes armazéns, muitos deles transformados em locais de diversão nocturna, dando muita cor à noite de Lisboa e transformando-a numa outra cidade.

Vejo passar a zona residencial e as antigas zonas industrial e comercial de Alcântara e por entre inúmeras obras que se estendem pelo caminho, erguendo novos e modernos edifícios e construíndo novas e amplas avenidas, vislumbro os deslumbrantes edifícios antigos, como o imponente Museu das Janelas Verdes, e alguns prédios de dois a três andares que, apesar de desgastados pelo tempo, ainda conseguem encantar pela sua arquitectura e cores alegres.

Ao chegar ao fim da viagem, apesar de não passar pelo mercado mais conhecido de Lisboa, 'A Ribeira', sinto no ar a azáfama dos vendedores que durante anos a fio fazem do mercado a sua segunda casa e dele tentam tirar o seu sustento, sem nunca parecerem desanimar.

No final da tarde, com a cidade mais calma e no regresso a casa, entrevêem-se nas ruas os rostos cansados, que um sorriso amarelo mal consegue disfarçar, e o trocar de face da cidade que, como uma mulher, parece ganhar vida e força para se vestir de luz e cor, entrando na noite para arrasar.

Todo este mundo fica para trás quando chego a casa e oiço, nos seus latidos e mios noctívagos, os cães e os gatos do bairro e, à porta de casa, já sinto o cheiro do jantar pronto a ir para a mesa. Nesta altura, chega, pelo menos para mim, o fim de um dia de Lisboa.


Escrito num dia esquecido no final de 1999 ou inícios de 2000.
Seja como for, foi no século passado. 


2 comentários:

  1. Mariza

    Adorei! :)

    És uma excelente observadora. Gosto destes retratos de certa forma jornalísticos visto que descreves os movimentos da cidade, sem teres uma real interação com eles, e achei interessante sobretudo esta passagem "são sempre as mesmas caras, mas nunca ninguém se fala", isto diz-me muito porque a cidade mesmo sendo grande à escala nacional ainda é capaz de proporcionar destes encontros diários sem que nós estejamos minimamente interessados em rever estas caras. Costumo chamar esses movimentos de "marchas da rotina".

    Também gostei do percurso que retrataste, de Alcântara até ao centro, pois já morei lá e foi dos lugares onde mais senti a cidade e daqueles onde o antigo e moderno mais se mesclam :)

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  2. Marinti,

    É um registo diferente do que faço aqui.

    A observação vem com a prática. Sendo que 4 anos a andar pelos mesmos caminhos, em rotina diária levam-nos a captar um pouco mais do que está à nossa volta, desde que não nos deixemos anestesiar por esta mesma rotina.

    Alcântara, para mim, ainda hoje continua a ser um dos pontos de passagem mais interessantes no meu percurso diário, desde da zona mais baixa até ao Alto de Santo Amaro (que tem das vistas mais bonitas para o rio e a ponte) vamos sentindo e vendo pulsar o antigo e o novo da cidade.

    Gostei do teu 'marcha de rotina', a ver se debatemos mais este conceito.

    Eu como ando muito de um lado para o outro, acabo por ver, conhecer muitas caras e, quando estou nos meus momentos sociáveis, se acabo por me cruzar com uma cara que julgo já ter visto bem mais que uma vintena de vezes tenho tendência a sorrir-lhe em reconhecimento.

    Isto leva a vários tipos de reacção:
    Negativa - algumas pessoas acham que sou louca (ao estilo quero invadir-lhes o espaço, quero ficar a tagarelar até à exaustão. Acabam por esforçar-se para não expressarem qualquer reacção e, em último caso, viram a cara);
    Positiva - outras acham que sou uma caixinha de surpresas, bem disposta (era mesmo isto que estavam a precisar para alegrar o dia. Estes retribuem o sorriso e se der até há uma pequena troca de palavras, que pode levar a uma conversa interessante);
    Estúpida - depois há aquelas que acham que como sorri estou no flirt, feito fácil-depravada (sou tão bom/boa que ela não me resiste e está a tentar seduzir. Por norma, também retribuem o sorriso e metem conversa, com pouco ou nenhum interesse, na linha do engate básico).

    Aqui temos que jogar com a sorte de apanharmos alguém que perceba o que é um sorriso.

    :)

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