O dia 23 de Janeiro traz-me sempre à memória outros tempos em que a casa de família ficava cheia.
Era dia de celebrar o aniversário do meu pai, da minha tia L, da minha avó e do meu avô Pú, sempre em conjunto.
O uso do passado é propositado, pois a partir do ano 2000 passou a ser o aniversário do meu pai e da tia L e de 2007 em diante passou a ser, exclusivamente, o aniversário do meu pai.
O meu pai, hoje, só está a comemorar 60 primaveras e pela filosofia que tem da vida pretende ficar por cá muitos mais anos. Já que enquanto pode anda, no mínimo, um passo à frente da morte, aproveitando cada dia como lhe apetece. Apesar desta corrida ter sempre o mesmo vencedor, diz que a temos que tornar única, esticando-a o mais que conseguirmos. Visto passarmos mais tempo mortos do que vivos, afiança ele, não custa nada lutarmos para ter mais uns créditos e nos mantermos em jogo do lado que conhecemos mesmo com as amarguras que este lado também traz.
Eu só posso torcer que para assim seja, já que quando entro nestas memórias há uma contradição de sentimentos que me invade e me leva do riso ao choro em menos de nada.
Sinto alegria por todos os que se ausentaram terem feito parte do melhor do meu passado.
Alegro-me com a recordação dos cheiros, dos sons e de toda a azáfama da preparação que envolvia este dia: a confecção da comida, a escolha do repertório musical e a organização da casa, que passava por desmontar algumas divisões para apoiarem a cozinha e a sala de jantar, de modo a haver espaço e áreas distintas para todos comerem, conversarem e dançarem.
Alegro-me com a recordação da expectativa e ansiedade vividas enquanto via os convidados chegar, sentirem-se bem recebidos e, por isso, à vontade para passarem um bom bocado.
Alegro-me com a recordação do prazer sentido por todos que já no final da festa, mesmo cansados, ainda arranjavam forças para agradecer esta partilha com calorosos elogios, abraços beijos e apertos de mão.
Mas também sinto a tristeza pela saudade e pelo vazio deixado por os saber fisicamente inacessíveis e ausentes.
Entristeço-me pela falta que sinto do meu avô Pú que, embora não partilhasse laços de sangue comigo, com a minha irmã e os meus primos, tinha o maior orgulho no papel que teve na criação dos seus 6 netos, orgulho esse também por nós partilhado já que tivemos a oportunidade de o amar como o avô que verdadeiramente foi e ter a nossa infância devidamente documentada nos seus inúmeros registos fotográficos.
Entristeço-me pela falta que sinto da força e também do carinho da minha avó, que liderava a família com firmeza não deixando ninguém sair da linha, principalmente os netos e os 2 rapazes (filhos de amigas de infância) que acolheu e criou como seus filhos. A todos nós, sem excepção, ensinou a cuidar de uma casa. Aos rapazes a saberem respeitar e tratar como iguais as mulheres. Às raparigas a darem-se valor e a saberem que merecem o respeito de qualquer homem.
Entristeço-me pela falta que sinto da forma fácil como a minha tia L cativava-nos com a sua ligeireza em encarar a vida como uma viagem em que devemos partilhar o que de melhor temos e tentar tirar lições que permitam tornar positivos os espinhos que nos são apresentados.
Recordando-me das despedidas que tive de cada um, sinto sempre o coração apertado. Dizer adeus, sabendo-o definitivo dói.
Do meu avô Pú despedi-me na visita que lhe fiz no Lar, poucos dias depois de ele ter sido submetido a uma cirurgia simples, que tinha tudo para correr bem, mas não correu. Apesar do sorriso de orgulho que transpareceu nos seus olhos (um azul e outro cinza) quando me viu, notei que lhes faltou o brilho que costumavam passar quando expressavam este sentimento. No seu lugar estava a opacidade característica de quem já baixou os braços à vida. Em menos de uma semana, numa tarde de finais de Novembro de 1999, acabou por partir.
Da minha avó, apesar das visitas quase diárias que lhe fazia, a despedida foi bem mais cedo do que a data da sua partida, nos inícios de Dezembro de 1999. Infelizmente, o tal do Alzheimer obriga-nos sempre a perder em vida aqueles que amamos e que nunca pensámos que pudessem deixar de nos amar, devido a uma "simples" quebra no circuito que os liga à realidade.
Da minha Tia L foi tudo muito à pressa para quem ficou, ela já tinha tudo preparado para este momento que estava prestes a chegar, há muito que sabia o que tinha, mas escondeu de todos o seu cancro e a sua recusa de toda e qualquer forma de tratamento. Eu apenas tive tempo de, numa visita que lhe fiz ao hospital, 'ralhar' com ela (para não chorar), perguntando-lhe porque estava ela a reescrever a história que nós as duas tínhamos planeado para a sua velhice. Ela sorriu, respondendo-me que, não sendo tão linear como a pretendemos, a vida prega-nos estas partidas. E esta aconteceu em pleno domingo de Carnaval de 2006.
Mas como o dia de hoje é para celebrar a vida volto a recordar o meu avô Pú, a minha avó e a minha tia L como realmente foram:
A minha avó como uma mulher poderosa e sempre bonita, pronta para fazer surgir um sorriso fácil quando a objectiva de uma máquina fotográfica apontava na sua direcção, ao mesmo tempo que contava as histórias da vida na ilha antes da vinda para a metrópole e espalhava pelo ar o seu cheiro a caramelo, frutos secos e manteiga de tantos bolos de casamento e aniversários feitos.
O meu avô Pú no seu estilo clássico. Camisa impecavelmente vestida, acompanhada por um nó de gravata executado na perfeição e um cabelo exaustivamente bem penteado. E isso mesmo que fosse para se enfiar na sala com as aparelhagens e colunas que desmontava para melhorar a qualidade do som dos milhentos discos que por elas passavam, para assistir aos seus programas da vida selvagem na televisão, para ler o simpósio médico ou para ir à cata das folhas de babosa (mais conhecidas por aloe vera) para acalmar a sua pele demasiado sensível à luz.
A minha tia L de braços abertos para ajudar o próximo, a promover o convívio e a união familiar. Aproveitando o seu tempo para estar umas horas perdida entre a sua paixão pelos livros e entre as conversas sobre muitas das viagem que fez pelo mundo (já que conseguiu por acasos da vida passar por quase todos os continentes) ou a escolha dos nomes a dar aos filhos que eu, a minha irmã e os meus primos iremos ter. Para além de ser a excelente anfitriã, que sem qualquer pudor, abria a porta da casa e convidava todos a irem-se embora, porque já era hora de dormirmos dormir.
Assim, consigo imaginar que se os três pudessem estar hoje a celebrar os 82, 93 e 71 anos, respectivamente, ainda teriam a mesma pedalada que o meu pai tem para nunca deixar passar em branco mais um ano de vida reunindo todos aqueles que vão dando sentido e alimentando a esperança que é a chama da vida.
E no fundo sempre estão, porque ano após anos neste dia, quando a família se junta, são sempre carinhosamente lembrados.