segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Dia que Marca

O dia 23 de Janeiro traz-me sempre à memória outros tempos em que a casa de família ficava cheia.

Era dia de celebrar o aniversário do meu pai, da minha tia L, da minha avó e do meu avô Pú, sempre em conjunto.

O uso do passado é propositado, pois a partir do ano 2000 passou a ser o aniversário do meu pai e da tia L e de 2007 em diante passou a ser, exclusivamente, o aniversário do meu pai.

O meu pai, hoje, só está a comemorar 60 primaveras e pela filosofia que tem da vida pretende ficar por cá muitos mais anos. Já que enquanto pode anda, no mínimo, um passo à frente da morte, aproveitando cada dia como lhe apetece. Apesar desta corrida ter sempre o mesmo vencedor, diz que a temos que tornar única, esticando-a o mais que conseguirmos. Visto passarmos mais tempo mortos do que vivos, afiança ele, não custa nada lutarmos para ter mais uns créditos e nos mantermos em jogo do lado que conhecemos mesmo com as amarguras que este lado também traz.

Eu só posso torcer que para assim seja, já que quando entro nestas memórias há uma contradição de sentimentos que me invade e me leva do riso ao choro em menos de nada.

Sinto alegria por todos os que se ausentaram terem feito parte do melhor do meu passado.

Alegro-me com a recordação dos cheiros, dos sons e de toda a azáfama da preparação que envolvia este dia: a confecção da comida, a escolha do repertório musical e a organização da casa, que passava por desmontar algumas divisões para apoiarem a cozinha e a sala de jantar, de modo a haver espaço e áreas distintas para todos comerem, conversarem e dançarem.

Alegro-me com a recordação da expectativa e ansiedade vividas enquanto via os convidados chegar, sentirem-se bem recebidos e, por isso, à vontade para passarem um bom bocado.

Alegro-me com a recordação do prazer sentido por todos que já no final da festa, mesmo cansados, ainda arranjavam forças para agradecer esta partilha com calorosos elogios, abraços beijos e apertos de mão.

Mas também sinto a tristeza pela saudade e pelo vazio deixado por os saber fisicamente inacessíveis e ausentes.

Entristeço-me pela falta que sinto do meu avô Pú que, embora não partilhasse laços de sangue comigo, com a minha irmã e os meus primos, tinha o maior orgulho no papel que teve na criação dos seus 6 netos, orgulho esse também por nós partilhado já que tivemos a oportunidade de o amar como o avô que verdadeiramente foi e ter a nossa infância devidamente documentada nos seus inúmeros registos fotográficos.

Entristeço-me pela falta que sinto da força e também do carinho da minha avó, que liderava a família com firmeza não deixando ninguém sair da linha, principalmente os netos e os 2 rapazes (filhos de amigas de infância) que acolheu e criou como seus filhos. A todos nós, sem excepção, ensinou a cuidar de uma casa. Aos rapazes a saberem respeitar e tratar como iguais as mulheres. Às raparigas a darem-se valor e a saberem que merecem o respeito de qualquer homem.

Entristeço-me pela falta que sinto da forma fácil como a minha tia L cativava-nos com a sua ligeireza em encarar a vida como uma viagem em que devemos partilhar o que de melhor temos e tentar tirar lições que permitam tornar positivos os espinhos que nos são apresentados.

Recordando-me das despedidas que tive de cada um, sinto sempre o coração apertado. Dizer adeus, sabendo-o definitivo dói.

Do meu avô Pú despedi-me na visita que lhe fiz no Lar, poucos dias depois de ele ter sido submetido a uma cirurgia simples, que tinha tudo para correr bem, mas não correu. Apesar do sorriso de orgulho que transpareceu nos seus olhos (um azul e outro cinza) quando me viu, notei que lhes faltou o brilho que costumavam passar quando expressavam este sentimento. No seu lugar estava a opacidade característica de quem já baixou os braços à vida. Em menos de uma semana, numa tarde de finais de Novembro de 1999, acabou por partir.

Da minha avó, apesar das visitas quase diárias que lhe fazia, a despedida foi bem mais cedo do que a data da sua partida, nos inícios de Dezembro de 1999. Infelizmente, o tal do Alzheimer obriga-nos sempre a perder em vida aqueles que amamos e que nunca pensámos que pudessem deixar de nos amar, devido a uma "simples" quebra no circuito que os liga à realidade.

Da minha Tia L foi tudo muito à pressa para quem ficou, ela já tinha tudo preparado para este momento que estava prestes a chegar, há muito que sabia o que tinha, mas escondeu de todos o seu cancro e a sua recusa de toda e qualquer forma de tratamento. Eu apenas tive tempo de, numa visita que lhe fiz ao hospital, 'ralhar' com ela (para não chorar), perguntando-lhe porque estava ela a reescrever a história que nós as duas tínhamos planeado para a sua velhice. Ela sorriu, respondendo-me que, não sendo tão linear como a pretendemos, a vida prega-nos estas partidas. E esta aconteceu em pleno domingo de Carnaval de 2006.

Mas como o dia de hoje é para celebrar a vida volto a recordar o meu avô Pú, a minha avó e a minha tia L como realmente foram:

A minha avó como uma mulher poderosa e sempre bonita, pronta para fazer surgir um sorriso fácil quando a objectiva de uma máquina fotográfica apontava na sua direcção, ao mesmo tempo que contava as histórias da vida na ilha antes da vinda para a metrópole e espalhava pelo ar o seu cheiro a caramelo, frutos secos e manteiga de tantos bolos de casamento e aniversários feitos.

O meu avô Pú no seu estilo clássico. Camisa impecavelmente vestida, acompanhada por um nó de gravata executado na perfeição e um cabelo exaustivamente bem penteado. E isso mesmo que fosse para se enfiar na sala com as aparelhagens e colunas que desmontava para melhorar a qualidade do som dos milhentos discos que por elas passavam, para assistir aos seus programas da vida selvagem na televisão, para ler o simpósio médico ou para ir à cata das folhas de babosa (mais conhecidas por aloe vera) para acalmar a sua pele demasiado sensível à luz.

A minha tia L de braços abertos para ajudar o próximo, a promover o convívio e a união familiar. Aproveitando o seu tempo para estar umas horas perdida entre a sua paixão pelos livros e entre as conversas sobre muitas das viagem que fez pelo mundo (já que conseguiu por acasos da vida passar por quase todos os continentes) ou a escolha dos nomes a dar aos filhos que eu, a minha irmã e os meus primos iremos ter.  Para além de ser a excelente anfitriã, que sem qualquer pudor, abria a porta da casa e convidava todos a irem-se embora, porque já era hora de dormirmos dormir.

Assim, consigo imaginar que se os três pudessem estar hoje a celebrar os 82, 93 e 71 anos, respectivamente, ainda teriam a mesma pedalada que o meu pai tem para nunca deixar passar em branco mais um ano de vida reunindo todos aqueles que vão dando sentido e alimentando a esperança que é a chama da vida.

E no fundo sempre estão, porque ano após anos neste dia, quando a família se junta, são sempre carinhosamente lembrados.

4 comentários:

  1. Uma bela e magnífica homenagem que fizeste aqui. Extremamente realista, contidamente emotiva, sempre ao teu estilo genuíno de contar.

    Ás vezes penso no meu óbito blogosférico, seja por saturação ou porque isto também consome muito tempo, mas depois penso nos sublimes textos que por vezes leio neste imenso espaço e no eu que perderia se o fizesse, muitos deles teus e assim mantenho-me por aqui.

    Creio que quem parte amado e que deixa os seus com uma infinita saudade, partiu em tranquilidade e com o sentimento de missão cumprida. Lamentável é ver os que esperam pela sua hora em camas de hospitais, os que passam anos sem receberem uma visita, os que dedicaram uma vida inteira a terceiros e receberam a solidão como única e tormentosa companheira, até ao dia da despedida.

    Eu tenho a sorte de até hoje nunca ter tido uma morte realmente significativa na minha vida, mas após este natal ter constatado o estado de saúde cada vez mais frágil da minha avó, ter lido este texto em que as figuras do teu avô Pú, da tua tia L e da tua avó, fez-me reavivar ainda mais essa situação. Contra isso nada posso fazer, mas creio que a figura e os ensinamentos que a minha avó me deu e ainda dá hoje para a vida, é em tudo semelhante ao que essas três pessoas te puderam proporcionar e que de alguma forma te moldaram ao que és hoje e também sei que ao recorda-los por aqui, estás a agradecer esse contributo imaterial e único e eles quem sabe, também te estão a agradecer neste momento. Eu acredito que sim.

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  2. Para te ser sincera durante o processo de escrita deste texto, que de facto fiz como homenagem pelo que todos eles trouxeram à minha vida, pensei que não iria chegar ao fim e muito menos torná-lo público:

    - Pelas recordações que foram surgindo, que voltaram a despertar sentimentos com os quais é difícil de lidar, pela sua dimensão e complexidade;

    - Pela dificuldade de escolha do que realçar sobre a vida que partilhei com cada um deles. Havia muito mais que queria e, acho, devia ter escrito (e sobre eles já muito escrevi);

    -Pelo receio de me expor perante os poucos que por aqui passam. Já que me senti despida em cada palavra escrita, frase construída e lágrima derramada.

    O ciclo da vida tem um princípio (do qual não nos lembramos), um meio (que devemos construir e partilhar com quem se vai e nos vai tornando importantes) e um fim (que tal como o princípio podemos não sentir chegar). Isso é o que temos garantido e não devemos temê-lo, mas sim apreciá-lo.

    Eu baseio o meu conceito de eternidade neste ciclo.

    Como escrevi, dias depois da minha avó partir (texto que esteve aqui, mas que passou para o lado B da minha vida, como gosto de chamar ao outro espaço que já tive), fico "[...] feliz por experimentar e viver neste tempo que vivo, que é único, infinito e eterno para mim e para todos aqueles que comigo o partilham. [...]".

    Portanto, a minha avó, o meu avô e a minha tia continuam comigo, porque embora ausentes deram-me um pouco deles, assim como eu lhes dei um pouco de mim.

    Quanto ao "óbito blogosférico" de que falas, também vou pensando nele neste espaço. Não pelo tempo que consome, mas sim pelo pouco tempo que lhe dedico. E tal como tu "mas depois penso nos sublimes textos que por vezes leio neste imenso espaço e no eu que perderia se o fizesse, muitos deles teus e assim mantenho-me por aqui."

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  3. "-Pelo receio de me expor perante os poucos que por aqui passam. Já que me senti despida em cada palavra escrita, frase construída e lágrima derramada."
    Magnifico.

    Entendo perfeitamente essa situação e também para mim falar sobre família não é propriamente fácil, seja qual for a situação.

    Tal como tu, cada vez envio mais textos para o lado B da vida, que embora gostasse de poder publicar, já não sinto o à vontade necessário para tal. No tempo em que haviam menos olhares e reações era muito mais fácil, agora não, por isso guardo-os para mim, ou se tiver que dirigir algum em especial, envio diretamente a quem de direito.

    Mas nunca é de mais voltar a referir que é destes textos que fazem falta neste meio. Lembrei-me que quando comecei nisto dos blogues foi após uma pesquisa no google em que me deparei com uma imagem de uma senhora já velhota, que depois redireccionou para um blogue em que uma jovem contava a vida da sua avó q entretanto tinha falecido.

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  4. Os textos que enviei para o lado B, foi porque inicialmente, muitos dos que aqui passavam conheciam-me. E a minha escrita, pela intensidade que muitas vezes carrega, levava a que houvesse telefonemas ou pedidos de encontro preocupados para saber o que se passava comigo.

    Já que grande parte deles, apesar de conviver comigo há largos anos, não estava habituado ao meu registo escrito e nunca conseguiram compreender os fortes laços familiares que sempre tive com os membros que se apresentam fora da família nuclear.

    Assim, estes desabafos quando por aqui publicados passaram a ser muito mais esporádicos.

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