quarta-feira, 3 de março de 2010

Hábitos Quebrados

Entre um chá e uma torrada, remetida à cumplicidade que o silêncio não mascara, oiço-a falar, oiço-a divagar.

Apenas pretendo isso. Aliás, sei que ela também pretende isso. Os anos de prática levam-me a ter esta certeza.

Por isso, quando em modo automático começa o seu monólogo eu, simplesmente, respiro fundo e vou registando mentalmente o que diz:

"A minha vida está parada e eu pouco ou até mesmo nada faço para alterar isso. Brinco com ela como se ainda não soubesse que o tempo não pára e que tudo tem um tempo próprio.

Sinto que preciso envolver-me mais na minha vida. Tenho que deixar de queixar-me do que vai mal e tenho que começar a fazer algo para mudar, para melhorar o que supostamente precisa ser melhorado.

Passo a vida a dizer que quero mais do que aquilo que tenho, mas nada faço para obter aquilo que quero.

Sinto-me sem forças, sem ânimo e sem motivação para agir. Encontro-me e reencontro-me num constante adiar.

Sinto-me triste e vazia por não conseguir encontrar nada ou alguém que ache possível acreditar.

Perdi a fé em tudo e acho que não vale a pena esforçar-me para obter algum momento de felicidade.

A qualquer momento tudo pode acabar. A minha vida pode acabar. E isso dá-me medo.

Não percebo porque temos de ter a consciência exacta do nosso fim. Não percebo porque não consigo viver livre e abertamente, sem ser constantemente invadida por este pensamento que tornou-se paralisante."

Nesta fase do seu discurso, em que construir trilhos com as migalhas da torrada já não é suficiente para conseguir dissimular o formigueiro que aquilo que oiço causa-me, solto o meu pensamento:

"Acho que devias ficar mais motivada a agir com esta certeza do fim. Acho que seria a atitude mais normal e seria a atitude que eu gostava de ver-te assumir."

O silêncio agora é imposto pelo olhar. Pelo meu, que não se coíbe de procurar o dela, e muito mais ainda pelo dela, que pela primeira vez desde o início da conversa passou a ver-me.

Tentamos perceber por que motivo o nosso ritual de chá e torrada, em que o meu papel se cinge ao egoístico ouvir em silêncio e o dela ao egocêntrico falar, reflectir e divagar, foi quebrado.

Mais um dia. Mais uma moedinha, mais uma voltinha.

Os dias passam incessantemente, sem apelo nem agravo, sem ver se a nossa vida merece tal continuidade.

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